Aprendizagem Baseada em Problemas
A Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), na língua inglesa “Problem-Based Learning (PBL)”, foi sistematizada pela primeira vez em 1969 no curso de Medicina da Universidade McMaster, no Canadá, que a utiliza até hoje. Em 1970, essa prática pedagógica foi introduzida nos Estados Unidos (EUA) no curso de Medicina da Universidade do Novo México e, na década de 1980, no curso de Medicina de Harvard. Na mesma época,ABP foi implantada no curso de Medicina da Universidade de Maastricht (Holanda), hoje uma das referências mundiais nessa metodologia, e relacionada aos trabalhos de maior impacto na área no período entre 1945 e 2014 (Pinho et al., 2015). No Brasil, foram pioneiros os cursos de Medicina de Marília (1997) e de Londrina (1998), assim como os cursos de pós-graduação em Saúde Pública da Escola de Saúde Pública do Ceará (Batista et al., 2005).
Na Educação Básica, a utilização da ABP é defendida por muitos autores (Glasgow, 1996; Delisle, 1997; Torp e Sage, 2002: Kain, 2003; Lambros, 2004; Hallinger e Bridges, 2016) e vem sendo aplicada em um grande número de países ao redor do mundo, entre eles o próprio EUA (Rivet e Krajcik, 2008; Wirkala e Kuhn, 2011), Canadá (Mehrizi-Sani, 2012), Alemanha (Ihsen et al, 2011), Coréia (Kim e Pedersen, 2011) e China (WongDay, 2009).
No Brasil, estudos revelaram que a aplicação da ABP na Educação Básica ainda é incipiente (Lopes, 2011). Alguns exemplos de trabalhos sobre o tema podem ser encontrados na literatura. Dentre eles, podemos destacar um trabalho sobre a atuação docente na ABP no Ensino Médio (Klein, 2013), no qual a autora destaca diferenças entre a abordagem da ABP e do ensino tradicional. Em outro estudo, foi avaliada a percepção dos alunos em relação à aplicabilidade da ABP no ensino de Matemática em um curso de Ensino Médio de um Instituto Federal em Roraima (Bezerra e Santos, 2013). Os resultados desse estudo apontam a ABP como abordagem instrucional com potencial de aproximar o ensino da Matemática à realidade dos alunos. Na esfera da Biologia, uma análise da motivação de estudantes e professores sobre a utilização da ABP em uma escola pública de Ensino Médio revelou uma maior motivação dos alunos e professores para a possibilidade da utilização imediata da metodologia na escola, a despeito das restrições atuais de infraestrutura (Malheiro e Diniz, 2008).
A Estrutura Básica da ABP
A ABP é uma estratégia instrucional que se organiza ao redor da investigação de problemas do mundo real. Estudantes e professores se envolvem em analisar, entender e propor soluções para situações cuidadosamente desenhadas de modo a garantir ao aprendiz a aquisição de determinadas competências previstas no currículo escolar. As situações são, na verdade, cenários que envolvem os estudantes com fatos de sua vida cotidiana, tanto da escola como de sua casa ou de sua cidade. A ABP tem três características principais:
- Envolve os estudantes como parte interessada em uma situação-problema;
- Organiza o currículo ao redor desses problemas holísticos, espelhados no mundo real, permitindo ao estudante aprender de uma forma significativa e articulada;
- Cria um ambiente de aprendizagem no qual os professores orientam o pensamento e guiam a pesquisa dos alunos, facilitando níveis profundos de entendimento da situação-problema apresentada.
Nesse contexto, a ABP é uma estratégia de ensino e aprendizagem que envolve a identificação do problema em situações complexas e a busca de suas possíveis soluções. Este trabalho é realizado por pequenos grupos de estudantes, chamados de grupos tutoriais, supervisionados por um professor, que recebe o nome de tutor. Esses grupos atuam sob uma estrutura composta de ciclos de aprendizagem que envolvem estudantes e professores.
Cada ciclo é formado por momentos específicos. O primeiro momento é o de formular e analisar o problema. Uma vez apresentados à situação-problema, os grupos são orientados a:
- identificar as informações fornecidas (cenário do problema) e o que cada um dos membros do grupo possui de conhecimentos prévios sobre a temática em questão (identificar os fatos);
- esboçar algumas ideias (gerar hipóteses) para a resolução do problema central identificado na situação em questão;
- identificar as informações que julgarem necessárias (identificar deficiências ou “lacunas” de aprendizagem) para resolver a questão levantada.
O segundo momento do ciclo de aprendizagem (estudo autodirigido) é caracterizado pela aprendizagem individual e autodirigida. As informações identificadas como importantes de serem coletadas para uma melhor compreensão do problema e a definição das estratégias a serem seguidas no momento da resolução, serão pesquisadas para que, mais tarde, sejam partilhadas e discutidas com outros integrantes do grupo.
No terceiro momento, os alunos voltam a se reunir, agora com novas e diferentes informações, que deverão ser aplicadas, compartilhadas, debatidas e avaliadas até que o grupo alcance uma ou mais novas conclusões. Se o problema for resolvido a contento o grupo redige um relatório final com a solução. Se isso não ocorre, um novo ciclo se inicia. Em todas as etapas, os estudantes produzem registros de suas atividades, que podem ser utilizados pelo professor como instrumentos de avaliação. O ciclo de aprendizagem descrito acima pode se repetir quantas vezes forem necessárias para que o grupo esgote suas possibilidades e conclua, oferecendo uma solução para o problema.
Na ABP, a aprendizagem sempre se dá ativando conhecimentos já existentes, que são compartilhados no grupo e norteiam os momentos de estudos individuais. Também no grupo, o debate proporcionado confronta os conhecimentos novos, obtidos individualmente, com as ideias dos demais membros do grupo. Avaliar e decidir os melhores caminhos são tarefas coletivas e, no final, o conhecimento é compartilhado com todos. Os ciclos de estudos independentes e momentos coletivos de discussão e avaliação motivam os estudantes e criam um ambiente crítico, conduzindo o grupo para soluções mais aprofundadas e fundamentadas. Sendo o problema um espelho da vida real, os estudantes são condutores ativos das hipóteses que precisam ser apresentadas, debatidas e aceitas pelo grupo. Esta é uma prática que vem sendo muito usada.
Conceitos Importantes
A Situação-Problema
A característica básica da ABP é a resolução de problemas. O problema inicia ou dispara o processo de ensino e aprendizagem nessa estratégia. Tal característica proporciona à ABP uma abordagem completamente diferente do ensino tradicional quanto às atividades direcionadas para a aprendizagem dos alunos.
De modo diverso dos problemas abordados tradicionalmente nas escolas, que geralmente apresentam informações de conteúdo e avaliam os estudantes de forma descontextualizada, os problemas utilizados na ABP são espelhados na realidade, situações-problema autênticas, propostas para que os estudantes desenvolvam soluções.
Como recortes da realidade, problemas devem ter um contexto interdisciplinar e seus desdobramentos devem contemplar as diversas disciplinas do currículo. Assim, professores das diversas áreas do conhecimento participam da construção de um problema. Na literatura é usado o termo team teaching para definir essa situação. Este termo é empregado para designar um ambiente de ensino onde trabalham diversos professores, de diversas especialidades, de forma integrada e dentro de um projeto escolar bem definido. Diferente de alguns projetos que são executados por vários professores como uma atividade extracurricular, a ideia de team teaching é de um ambiente de ensino no qual são trabalhados os conteúdos curriculares por diversos professores simultaneamente, de forma organizada e previamente definida no currículo escolar.
A Estrutura de uma Situação-Problema
Na Literatura, uma situação-problema da ABP é definida como um ill-structured problem. O prefixo ill- deriva do substantivo ill, que significa doente e introduz em inglês a ideia de algo que não é suficiente (not enough), que está incompleto. A tradução literal do termo ill-structured problem seria “problema mal-estruturado”. Porém, traduzido desta forma, o termo transmite a ideia de um problema malfeito, inadequado ou mal formulado. Não é esta a proposta apresentada pela ABP. O seu antônimo, well-structured problem, é um “problema bem-estruturado”, ao qual o estudante responde por meio da aplicação de um algoritmo apropriado. Nesses casos, não raro, as informações necessárias para a resolução encontram-se descritas no enunciado, cabendo ao aluno apenas juntar as peças do “quebra-cabeça” de maneira adequada para encontrar a solução. São problemas como os encontrados em testes de matemática, por exemplo, em que há apenas uma resposta correta a ser encontrada pelo estudante com a aplicação das fórmulas aprendidas previamente em sala de aula.
No caso de um ill-structured problem, o cenário apresentado geralmente não possui todas as informações necessárias para a sua solução, gerando uma série de questionamentos sem respostas imediatas, os quais deverão ser investigados pelos alunos. Na ABP, o problema central é uma situação complexa que não possui apenas uma resposta considerada certa; não tem somente uma solução possível. Os problemas espelham o mundo real, por isso as informações sobre o problema são muitas vezes conflitantes, não devendo estar arrumadas para facilitar o entendimento. Na vida real os alunos encontrarão uma complexidade na qual as informações, as opiniões e os valores das pessoas podem estar em conflito. Estas características exigem do estudante uma reflexão sobre o problema e a busca de uma solução elaborada por ele mesmo, que não seja a mera reprodução de informações encontradas em livros.
Além de uma estrutura complexa que exija reflexão e discussão por parte dos estudantes, as situações-problema devem proporcionar o desenvolvimento de habilidades específicas do currículo. Os problemas devem ser trabalhados em um tipo de abordagem que contextualize o conteúdo de aprendizagem, os conhecimentos e habilidades aprendidas pelos estudantes durante o curso. Portanto, na construção de um caso investigativo deve ser levada em consideração a utilidade pedagógica para o currículo da situação proposta no problema, ou seja, os conteúdos do currículo escolar que devem ser contemplados durante o processo de resolução do problema. Ademais, um problema bem elaborado deve, como já enfatizamos, possibilitar conexões com o conhecimento prévio dos estudantes, ser relevanre para eles, de modo a tornar os conteúdos relacionados potencialmente significativos. Deve possuir componentes atuais e que despertem o interesse dos alunos pela narrativa do caso, inserindo os estudantes em um clima de tomada de decisão. Em situações-problema desse tipo, os alunos são envolvidos como parte interessada na resolução da questão.
Tutor, o Professor como Orientador
O termo usual na literatura para definir o professor na ABP é tutor. O mesmo termo é utilizado em experiências com ABP no Brasil. Vale ressaltar que, atualmente em nosso país, o termo tutor é polissêmico e pode ser usado também fora de ambientes convencionais de aprendizagem. Assim, é relevante enfatizarmos que, não raro, a simples generalização de um termo pode não condizer com a real intenção de seu uso em outras línguas e tornar-se uma expressão das dificuldades de importação de modelos sem as devidas adaptações culturais.
O professor é uma figura imprescindível e com função bem definida na ABP. No caso do termo tutor, dada sua polissemia, a simples utilização, desconectada do seu significado na metodologia, pode gerar confusõesrespeito do papel que ocupa o tutor da ABP. Nos dicionários brasileiros, a palavra tutor possui como significado a figura de tutela do Direito, ou seja, aquele que protege ou defende os interesses de alguém – o guardião. Tal entendimento está relacionado à origem da palavra em latim, que vem de tueri, que indica “olhar”, “proteger”, “guardar”. Outra utilização bem difundida atualmente para o termo tutor designa o profissional que trabalha com alunos no Ensino Aberto e a Distância (EaD), modalidade que vem crescendo bastante no país. Para evitarmos uma compreensão que não condiz com o tutor na ABP, cabe aqui uma distinção.
Com base em nossa interpretação da metodologia, a ideia que melhor facilita o entendimento das funções do tutor é a de um “professor orientador”. Alguns autores indicam que a função do professor na ABP se assemelha mais a um guia ou a um facilitador. Segundo Torp e Sage (2002), a palavra inglesa coach, cuja tradução literal é “treinador” ou “instrutor”, expressa melhor as funções do tutor nos grupos de estudo daquela metodologia. As autoras também indicam que o tutor funciona como um “treinador cognitivo”, indicando caminhos e formas de estudo aos alunos. Kain (2003) ressalta outra função importante para o professor, que é a de conselheiro (do inglês counselor). O autor destaca a importância do tutor como um modelo para os alunos, exercendo, em alguns momentos, a figura de “confidente”.
Um tipo de relação entre estudantes e professores semelhante à estabelecida na ABP é a que ocorre nos cursos de pós-graduação stricto sensu com a figura do “orientador”, ideia que pode representar bem o papel do tutor em sua relação com os grupos de estudo da ABP. Porém, além da função de orientador, os professores poderão atuar como professores tradicionais ou como consultores em determinados momentos no decorrer dos ciclos de aprendizagem da ABP, discutindo e expondo temas específicos, norteando o trabalho. Esta atuação poderá ocorrer através de palestras ou de pequenos cursos em temas que sejam bastante específicos ou com um alto grau de complexidade, por exemplo. Desta forma, nos cursos baseados em ABP, a ideia do papel de “orientadores” e “professores”, que já possuem significados suficientemente claros na educação brasileira e que indicam, de forma bastante objetiva duas funções pedagógicas distintas, mas complementares no processo de ensino-aprendizagem, pode nos remeter a um significado mais adequado das funções atribuídas ao tutor na ABP. Deste ponto em diante, utilizaremos o termo professor (professor orientador) como sinônimo de tutor na ABP.
O Aprendiz como Parte Interessada no Problema
Os problemas propostos em metodologias como a ABP devem envolver os estudantes para uma tomada de decisão. Na literatura de língua inglesa, é usada a palavra stakeholder. O vocábulo tem sua origem na área de Administração e indica as pessoas ou instituições interessadas nas ações ou nos produtos de uma determinada empresa. É alguém que investe seus recursos em uma proposta. O uso desta palavra entre os teóricos da ABP tem a intenção de atribuir aos alunos o mesmo peso de investidura em uma questão de interesse que existe no ambiente empresarial.
Como vimos, durante o ciclo de aprendizagem da ABP, os estudantes se encontram imersos na resolução de um problema, que não é óbvia e tampouco está contida em seu enunciado. A técnica requer que os estudantes avancem mais refletidamente e com mais esforço do que em exercícios que exigem memorização mecânica, permitindo o alcance de níveis que necessitam do desenvolvimento de competências cognitivas mais avançadas (Delisle, 1997).
Para que esse aprofundamento ocorra a contento, a situação-problema deve ser elaborada de maneira a despertar o interesse dos estudantes (Sá e Queiroz, 2010), fazendo relações com seus conhecimentos prévios e motivando a participação ativa. Os casos a serem resolvidos devem abarcar situações que os estudantes poderiam enfrentar em seu cotidiano. O aprendiz na ABP entra na situação-problema e se apropria dela. É importante que o papel dos estudantes na resolução faça com que eles naturalmente tenham algo a dizer (Torp e Sage, 2002), ou melhor, que sejam parte interessada na busca da resposta.
A ABP no Contexto do Ensino Médio
Estudantes e professores assumem novos papéis na ABP. Estes novos papéis precisam estar muito claros para que a ABP possa ser executada da melhor maneira possível para a aprendizagem dos estudantes. Da mesma forma, a estrutura da escola precisa ir além das classes coletivas tradicionais e comportar os grupos de estudo (grupos tutoriais).
Para a implementação da ABP é necessário imaginar uma adaptação entre a proposta inicial desta prática pedagógica na formação de médicos e outros profissionais universitários e esta mesma prática na educação básica, em especial na educação pública obrigatória. Vamos tentar destacar as principais diferenças nos papéis desempenhados pelos principais atores desse processo estudantes e professores - e também as diferenças de alguns aspectos entre a Educação Superior e a Educação Básica.
Adaptação da Situação-Problema como Unidade Básica
Na proposição inicial da Universidade de McMaster (Canadá), os formuladores do novo currículo médico tinham como principal preocupação garantir que os estudantes fossem capazes de aplicar conhecimentos dos cursos básicos na prática clínica. Para tanto, pequenos grupos de estudantes recebiam as informações sobre casos clínicos reais e tinham que lidar com esses dados na busca de um diagnóstico ou de uma prática terapêutica. A intenção era estabelecer um aprendizado das questões biomédicas básicas em um ambiente de aplicação imediata dessas informações, garantindo uma melhor compreensão e apreensão dos novos conhecimentos. Esses conhecimentos adquiridos baseados na realidade são mais facilmente aplicados pelos futuros médicos no momento de sua prática clínica do que quando os estudos são do tipo “responder nas provas e depois esquecer” (Neville e Norman, 2007).
O caso clínico para o médico, a construção de uma ponte para o engenheiro ou um processo no tribunal para um advogado são situações típicas de cada uma dessas profissões que podem se tornar uma situação-problema em um currículo baseado na ABP. Porém, na Educação Básica, não é possível predizer em que situação profissional um determinado aprendizado terá que ser aplicado.
Os estudantes poderão estar trabalhando em qualquer assunto ou tema pertencente ao currículo escolar, mas precisarão fazer cálculos, interpretar leituras complexas ou decidir entre estratégias tecnológicas. Dessa forma, é necessário que os estudantes trabalhem com cenários mais generalistas e que sejam mais comuns na vida cotidiana de qualquer pessoa. Ademais, esses cenários precisam garantir o aprendizado das competências previstas no currículo escolar em vigor, respeitando as características de cada escola.
Na ABP, a situação-problema é a base da estrutura curricular e não mais a aula, ou o “tempo”, ou o “horário”. Terminologias comuns no Brasil que não se enquadram nessa proposta: “hoje eu tenho dois tempos de biologia ou duas aulas de matemática”; “o primeiro horário é de educação física e o último horário é de química”. O chamado “tempo”, ou hora/aula, é uma divisão do dia de trabalho de estudantes e professores e que corresponde aproximadamente a 50 minutos de aula. Durante esse “tempo de aula”, o professor de biologia, por exemplo, geralmente só trabalha conteúdos relacionados com a biologia, o mesmo acontecendo com as demais disciplinas.
A substituição da aula, ou do “tempo”, pela situação-problema traz uma nova unidade de medida para as tarefas escolares. Ainda que continuem os “tempos” como prática escolar, na utilização de metodologias como a ABP, tais convenções não servirão mais para separar conteúdos ou finalizar um determinado assunto, já que o esforço de aprendizagem é contínuo até uma resolução satisfatória do problema que está sendo trabalhado. O fim de uma sequência de ciclos de aprendizagem com a resolução do problema proposto será o momento em que alunos e professores farão uma espécie de balanço do que foi aprendido e uma avaliação das competências que foram alcançadas durante a tarefa escolar.
O Estudante na ABP
Estudante é o aprendiz de uma escola. Aprendiz é todo aquele que está recebendo novas informações, independentemente de ser membro de uma escola ou de outro processo formal de ensino. Esses são os entendimentos que iremos adotar daqui por diante. Como a função do estudante nos cursos expositivos já é bem conhecida, o que importa aqui é a apresentação do papel do aprendiz na ABP.
Os Estudantes Desenvolvem a Habilidade de “Aprender a Aprender”
Na resolução de uma situação-problema, os estudantes são orientados pelo professor, que os guia sutilmente no percurso, a fazer uma avaliação do desempenho. Essa função do professor orientador é fundamental para clarificar o percurso no sentido de os aprendizes assumirem o papel de ativos no processo (Delisle, 1997). Assim, os estudantes, ao trabalharem em ciclos de aprendizagem com o intuito de resolver o problema proposto, tornam-se capazes de identificar o que devem aprender para alcançar seus objetivos. Compartilhando o que descobrem, identificam o que mais precisam conhecer e refinam seus relatórios conforme aprendem mais, antes de estarem prontos para considerar algum tipo de solução para o problema (Torp e Sage, 2002). A ABP, desse modo, permite que os estudantes assumam a responsabilidade pela própria aprendizagem (Araz e Sungur, 2007); motivados pelas suas pesquisas, os estudantes tornam-se aprendizes autodirigidos (Torp e Sage, 2002). Os Estudantes Aprendem de Maneira Colaborativa
A aprendizagem colaborativa pode ser definida como uma construção coletiva do conhecimento, que emerge da troca entre pares, das atividades práticas, reflexões, dos debates e questionamentos dos aprendizes em processo mediado por professores (Torres, 2007).
Os estudantes na ABP assumem papéis definidos e essas funções mudam a cada situação apresentada e os momentos de discussão são sempre registrados (Wood, 2003). Os grupos possuem geralmente de oito a dez estudantes, a etapa de discussões em grupo deve durar o tempo suficiente para permitir o desenvolvimento de uma boa dinâmica. Caso o professor perceba conflitos de personalidade ou outros comportamentos disfuncionais, os grupos podem ser alterados (Wood, 2003).
Uma vez imersos em seu papel na situação-problema, os estudantes coletam e compartilham informações. Essa atividade habilita todos eles a ganhar um entendimento holístico do problema (Torp e Sage, 2002). Os grupos colaborativos desenvolvem nos estudantes a capacidade de argumentação, pois, como as informações trazidas pelos membros do grupo serão aplicadas na tomada de decisão em relação ao problema, torna-se essencial que cada estudante exponha e negocie de forma coerente o que aprendeu (Savery, 2006).
O trabalho colaborativo é essencial na aquisição de outras habilidades importantes. Após saírem da escola, a maioria dos estudantes encontrará, no mundo do trabalho, situações nas quais eles precisam partilhar informações e trabalhar produtivamente com os outros. A ABP tem um grande potencial, por meio do seu formato de organização, para o desenvolvimento de tais aptidões (Savery, 2006). Um estudo de metanálise sobre os efeitos da ABP, que utilizou os resultados de 43 publicações (Dochy et al, 2003), revelou que os estudantes que aprendem através dessa estratégia de ensino (e de organização curricular) têm maior eficiência na aplicação das habilidades adquiridas, assim como são mais eficientes na retenção de conhecimento em longo prazo. Os mesmos resultados foram observados no Ensino Médio, quando comparados grupos de estudantes que utilizam ABP e grupos que utilizam o ensino tradicional (Wong e Day, 2009). Ademais, um estudo publicado no Brasil aponta para uma maior motivação dos estudantes na utilização da ABP no Ensino Médio, em detrimento do ensino tradicional (Malheiro e Diniz, 2008).
Avaliação na Aprendizagem Baseada em Problemas
Avaliação é um tema muito complexo. Portanto, não pretendemos aqui aprofundar o assunto. Contudo, ressalta-se a característica processual e formativa da avaliação empregando a ABP.
Não raro, a avaliação da aprendizagem escolar é reduzida a números e médias que buscam classificar os alunos a partir da capacidade que os mesmos possuem de memorizar conteúdos para realizar provas, testes ou exames. Nesses casos, a avaliação escolar se distancia do seu aspecto formativo, de dar subsídios para aprimorar de forma contínua as intervenções e as situações didáticas desenvolvidas nas salas de aula (Perrenoud, 1999).
Na ABP busca-se um modo diverso ao observado regularmente nos planejamentos em vigor nas escolas brasileiras, nos quais a avaliação é geralmente baseada no formato de “teste” ou “prova”, ou seja, um registro por escrito com objetivo de medir os conteúdos aprendidos pelo estudante. O processo de avaliação na ABP é mais abrangente em seus métodos, procedimentos e finalidades (Delisle, 1997). Como apontamos há pouco, os ciclos de aprendizagem terminam quando a situação-problema chega ao fim. Cada problema termina com um produto do desempenho realizado pelos alunos para alcançar a resolução, que pode ser apresentado de formas diversas (relatórios, palestras, filmes etc.). Dessa forma, é possível ao professor a avaliação tanto dos objetivos do conteúdo quanto das competências e habilidades a serem atingidas pelos estudantes (Delisle, 1997, Lopes, 2011).
As competências e habilidades avaliadas pelo professor são avaliações de desempenho, nas quais se analisam as práticas de cooperação, comunicação, trabalho em equipe, além da competência de cada indivíduo e do grupo para responder, gerenciar e resolver as situações-problema apresentadas (Glasgow,1996; Delisle, 1997; Torp e Sage, 2002). A avaliação se dá de maneira formativa ao longo de todo o ciclo de aprendizagem, permitindo o acompanhamento de todo processo de construção de conhecimento por parte dos aprendizes, acompanhando o progresso deles. Voltado para a aprendizagem, o processo avaliativo torna-se um instrumento valioso no fornecimento de subsídios para intervenções de aprimoramento das próprias estratégias de ensino.
A Aprendizagem Baseada em Problemas e o Modelo Tradicional de Ensino
Ratifica-se que a ABP é mais do que uma técnica educacional ou método de instrução. Trata-se de uma estratégia tanto educacional quanto de construção curricular, na qual em vez de uma organização convencional por disciplinas, o currículo é estruturado com o objetivo de fazer a integração de disciplinas (Savery, 2006; Lopes, et al., 2015). Torp e Sage (2002) também indicam que a ABP é um “organizador do currículo e, também, uma estratégia instrucional”. Segundo as autoras, uma definição ampliada da ABP é:
“Nós vemos um currículo baseado na ABP como promovedor de experiências reais/legitimas que favorecem a aprendizagem ativa, que dá apoio à construção do conhecimento e naturalmente integra a aprendizagem escolar e vida real, assim como integra as disciplinas. A situação problemática é o centro da organização do currículo. Ela atrai e mantém o interesse do estudante com sua demanda por solução, enquanto expõe múltiplas perspectivas. Os estudantes são solucionadores de problema engajados, identificando a raiz do problema e as condições necessárias para uma boa solução, perseguindo o sentido e o entendimento, tornando-se aprendizes autodirigidos. Os Professores são orientadores cognitivos, que nutrem um ambiente que favorece a investigação aberta / livre” (p. 15-16).
Como metodologia construtivista de ensino alicerçada na resolução de problemas que contemplam a realidade, a ABP admite que tanto a realidade quanto o conhecimento são construídos pelo sujeito cognoscente (Moretto, 2003). Estratégias desse tipo objetivam evitar que os alunos ocupem uma posição passiva, que se limita em absorver os conhecimentos expostos pelo professor, ou educação bancária (Freire, 2005). Embora, com efeito, muitos professores utilizem práticas participativas que muitas vezes não fazem parte obrigatoriamente do currículo escolar, ainda são difundidos modelos de abordagem que valorizam o estudante apenas na posição de um “ouvinte atento”.
Práticas construtivistas como a ABP impõem uma rotina de sala de aula com uma participação permanente dos estudantes, que são o foco do processo de ensino e constroem ativamente o conhecimento. A fim de melhor destacar os fundamentos da ABP discutidos, apresentaremos um quadro que traz uma síntese das principais características dessa metodologia quanto ao papel do estudante, do professor, do foco cognitivo e de outros aspectos importantes
Tipo de Instrução | ABP | Ensino Tradicional |
Papel do Professor | Orientador apresenta a situação-problema. Modela, orienta. Envolve-se no processo como parceiro de investigação. Avalia a aprendizagem. | Direciona o ensinamento. Détem o conhecimento. Avalia o estudante. |
Papel do Estudante | Participante. Trabalha ativamente com a complexidade da situação. Investiga e resolve os problemas como parte envolvida. | Receptor. Passivo. Ouvinte atendo. |
Foco Cognitivo | Estudantes sintetizam e constroem o conhecimento para chegar à solução dos problemas de forma a ir ao encontro das condições que eles próprios estabeleceram. | Estudantes aplicam o conhecimento recebido em situação de prova. |
Foco Metacognitivo | Os professores guiam/orientam quando necessário. Estudande desenvolve estratégia para possibilitar a própria aprendizagem. | Nenhum. O Estudande tem a responsabilidade de estudar. |
Papel do Estudante no Problema | Parte interessada/envolvida. São imersos na situação que reflete a realidade. Argumenta e guiam seus estudos em busca de solução. | Aprender assuntos, frquentemente não relacionados com a sua experiência pessoal. |
Problema | “Mal-Estruturado”. Apresentado como uma situação dentro da qual um problema latente ainda pode ser resolvido. | “Bem-Estruturado”. Apresentado geralmente como o um desafio a memória. |
Informação | Pouco é apresentado pelo professor que não seja identificado pelos estudantes como algo que necessitam aprender mais. A maior parte é coletada e analisada pelos próprios estudantes. | Organizada e apresentada pelo professor. |
Uma Síntese da Aprendizagem Baseada em Problemas
A partir de uma síntese das características que foram abordadas, apresentadas e discutidas até aqui, propomos uma definição da ABP para os professores da Educação Básica:
A ABP é uma estratégia educacional de busca de soluções para situações-problema complexas e baseadas na vida real por pequenos grupos que deverão assumir a posição de parte interessada na resolução do problema, supervisionados por um professor orientador.
Contudo, como já destacamos, a ABP é uma prática pedagógica ainda pouco conhecida no contexto da Educação Básica no Brasil e, mesmo quando conhecida, pouco implementada. Os termos abordados aqui são descritos com o objetivo de oferecer uma visão geral de seu significado e função no contexto da técnica. Ademais, existem adaptações da própria estratégia, visto que muitas instituições que utilizam a ABP criaram e criam suas próprias variações dentro dos preceitos da metodologia (Barrows, 1986). Essas adaptações podem ser organizadas de muitas maneiras: problemas mais longos ou menores, intercalados com palestras, práticas laboratoriais etc. (Waterman, 1998, Kain 2003). Desse modo, é possível que existam outras denominações para os termos e algumas variações na estrutura de funcionamento aqui apresentada. Muitas aplicações dos fundamentos da ABP constituem-se em metodologias derivadas desta técnica. Dentre elas, destacamos o Estudo de Casos Investigativos (Case Study), que utiliza os preceitos da ABP abordados aqui e constitui-se em uma estratégia que pode ser aplicada em diversos contextos educacionais (Sá e Queiroz, 2010). O Estudo de Casos Investigativos permite a utilização daqueles preceitos, como o problema no foco central da aprendizagem, sem a necessidade de um currículo totalmente
estruturado neles, como ocorre com a ABP (Savery, 2006).
Ressalta-se que a ABP vem sendo empregada em muitos países, notadamente no Ensino Superior. Desse modo, sua prática vem sendo avaliada por pesquisas conduzidas em ambiente científico. Mesmo com variações, as funções de cada elemento nos cursos baseados na ABP devem ser respeitadas de modo a garantir o mesmo êxito de aprendizagem que as referidas avaliações têm indicado.
Referências:
Aprendizagem baseada em problemas : fundamentos para a aplicação no ensino médio e na formação de professores / Renato Matos Lopes, Moacelio Veranio Silva Filho, Neila Guimarães Alves (organizadores). – Rio de Janeiro : Publiki, 2019. 198 p. ; ebook.